quarta-feira, 24 de junho de 2009

Pablo Silva. Um coração simples.

Diego Salmen

Terra Magazine publica ao longo desta semana a série "Brasil: guerra urbana" para mostrar as faces ignoradas da violência. Em 30 anos, foram mais de 1 milhão de homicídios registrados. As reportagens contarão as vidas esquecidas de dez brasileiros que não tiveram a chance de concluir desejos ínfimos. O extraordinário cotidiano de homens e mulheres comuns. Nesta quarta-feira, 24, publicamos a sétima história. A de Pablo Silva.

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Um beijo na mãe, no pai, um afago nos pelos brancos do cachorrinho maltês Igui. Cruzava os vãos do sobrado no Jardim Belval, periferia de Barueri, na grande São Paulo. Chegando à garagem, saltava em sua moto para ganhar o asfalto. Quando não a trabalho, estacionava a Parati "bola" na calçada, para curtir um som e trocar ideias com os amigos. Pablo não saía de casa sem fazer o sinal da cruz."Ele era tudo de bom", conta a prima Jancarla Silva, a Jan. Alma doce e espirituosa, Pablo Patrick da Silva, 21 anos, foi assassinado em 22 de maio. Numa noite de segunda-feira, ladrões o emboscaram na porta de casa, em busca de um cofre. Levaram-no para dentro do sobrado, e renderam o pai, João Pires, e a mãe, Maria Encarnação. O bando se irritou com a inexistência do cofre. Pablo e João foram alvejados.

O pai morreu no mesmo dia, enquanto Pablo só teve a morte cerebral decretada na tarde de terça; à noite, a mãe - que enfrentava um câncer - sofreu um enfarto fulminante. Da família, restou apenas a irmã, Jacqueline.

Pablo foi uma criança arteira, brincalhona. Zombava de todos, mas a ninguém faltava com o respeito. "Puxou ao pai, piadista", lembra o tio Urbino Pires. "Nossa, ele não obedecia a minha vó!", complementa Jan. Desde pequeno, quando se esgueirava em cima do triciclo de plástico vermelho e azul, sonhava ter uma moto.

Juntou dinheiro como assistente de pedreiro, vendedor, entregador. Fez de tudo um pouco, e enfim comprou uma moto CG. Pablo levou os estudos no toque de bola até se formar no ensino médio. Nunca demonstrou cumplicidade com os livros. "Não repetiu de ano, mas não era um aluno nota 10", rememora, rindo, a prima.

Mandava ver na mesa. Pizza, pastel e lasanha. "Era do tipo que ficava de olho para comer a sobra de alguém na mesa", diverte-se Jan. "Comia bem".

Há cerca de dois anos, Pablo - que adorava dar apelidos aos amigos - trabalhava como motoboy na empresa de logística de um vizinho. Nos finais de semana, corria de porta em porta com pizzas e esfihas a tiracolo. O emprego contrariava a mãe, dona de casa recatada, que desejava ver o filho diplomado. Em casa, não passava por apertos financeiros; sequer precisaria trabalhar, e até contaria com o auxílio da família, caso quisesse ingressar na faculdade.

Optou pelo trampo, sempre com o intuito de bancar as próprias despesas: equipamentos de som para o carro, reformas na moto, saídas com os amigos. E roupas. "Pablo era o estereótipo do playboy", conta Jan. "Desde pequeno estava acostumado a usar roupas de marca; quando cresceu, deu uma maneirada porque viu que não era tão barato assim", ri a prima.

À direita, com amigos

A aparência, aliada às boas roupas, garantiu a Pablo sucesso entre as mulheres; bem vestido, vivia rodeado de meninas. Antes da gandaia, porém, o compromisso: apaixonou-se por uma vizinha, com quem namorou por quatro anos. O relacionamento não deu certo. A namorada era ciumenta, segundo parentes e amigos. Voltou às pistas. Pablo queria ser livre, gostava de sair. Mentira. "Acho que ele morreu gostando dela", suspeita Jan.

Do pai, além do bom humor, herdou também uma paixão: o Corinthians. Torcedor roxo, conta o tio Urbino, frequentava assiduamente o estádio. Quando menino, voltava para casa da avó chorando porque seus amigos caçoavam da pouca habilidade nas quatro linhas. Era admoestado pela prima: "volta pro jogo e para de chorar!".

Mais tarde, tentativa malograda de jogar no clube do Parque São Jorge. Restou-lhe a fiel torcida. E uma lembrança azeda da adolescência, quando foi encurralado por integrantes da torcida Independente:

- Pra que time você torce?

Sob risco de agressão, Pablo não hesitou:

- São Paulo.

Puniu a si mesmo pela traição. Chorou, mas chegou inteiro em casa. Apenas encarou a chacota dos tios que presenciaram a cena.

Quando não acompanhava o time, gostava de estar com as pessoas. Com os amigos, geralmente nas ruas do bairro, às vezes em bares, raramente em baladas. Nem cigarro, nem bebida. Com a família, o amor de filho caçula. E... com as mulheres. Uma aqui, mais uma ali, outra mais pra cá.

- Tem Pablo para todas elas - dizia.

Cultivava também o espírito. Não tinha religião, mas se benzia sempre que via um templo ou igreja. Certa vez, sofreu um acidente de moto que lhe custou uma perna quebrada. Supersticioso, pôs um pequeno crucifixo dentro do gesso.


Uma semana antes de ser assassinado

Os vizinhos o chamavam de "filho do português". João, o pai, trabalhou a vida toda em frigoríficos. Emprego que lhe valeu o apelido de "João da Linguiça". Aposentado, passou a comercializar os embutidos. Migrou há mais de 20 anos, assim como a esposa, oriunda da Ilha da Madeira. Conheceram-se no Brasil, e aqui se juntaram.

Recentemente, João deu seu próprio Golf de presente a Pablo; faltava apenas formalizar a transferência com a papelada. Na mesma época, o filho motoboy pediu demissão do emprego. Queria atender aos anseios de dona Maria e finalmente entrar numa faculdade. Despreocupado, entraria num curso vocacional para descobrir que carreira seguir. "Ele estava começando a pensar no futuro só agora", diz Jan.

O motoboy não teve, porém, tempo para comunicar à família os novos planos.

Em março deste ano, ladrões invadiram pela primeira vez a casa do pai, pelos fundos, para roubar seu carro. Sem sucesso. Continuaram, porém, espreitando a vítima. Parentes e amigos acreditam que a pinta de "playboy" de Pablo chamou a atenção dos bandidos.

Dois meses depois, o incidente se repetiu. Para nunca mais suceder. Hoje o sobrado da rua Casimiro de Abreu está fechado. Como lembrança, roupas, pertences e mobiliário das vítimas.

Muito antes de morrer, Pablo havia manifestado, espontaneamente, o desejo de ser doador de órgãos. Evitava entrar em discussões sérias, mas não hesitou quanto a essa decisão. Seus órgãos se espalharam em sete vidas. Para Jancarla, sem risco de ser rejeitado: "Ele não tinha maldade no coração".

Terra

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