A denúncia publicada pelo sério jornal Corriere della Sera, na sexta-feira passada (19), sobre uma grande fraude envolvendo a falsificação de documentos para a obtenção da cidadania em território italiano colocou mais combustível no propósito de alguns setores do atual Governo no sentido de, no mínimo, impor limites ou até mesmo cercear de forma quase absoluta esse direito adquirido pelos ítalo-descendentes.
A primeira matéria, assinada pelo jornalista Rocco Crotoneo, dá conta da existência de uma gangue especializada na confecção e encaminhamento dos documentos, com ramificações em São Paulo e em Porto Alegre, e com a participação de escritórios especializados na Itália.
Foto: Arquivo
Segundo a matéria, inclusive organizações extremistas estariam usando o Brasil como ponte para obter a cidadania, o que lhes permitiria ingressar com mais facilidade nos Estados Unidos. Além disso, é abordado o aspecto de que a maioria dos jovens que procura a cidadania tem como efetivo destino a Grã-Bretanha. Ou seja, o documento se transforma em uma mera, mas fundamental, forma de ingressar na União Europeia em busca de oportunidades de trabalho.
No sábado (20), novas matérias do jornalista, que é correspondente no Rio de Janeiro, destacando que o Ministério do Exterior da Itália reconhece a existência do problema de falsificações na obtenção da cidadania. O caso denunciado pelo Corriere estaria sendo analisado e, se necessário, seriam tomadas medidas judiciais. Mas o problema principal, segundo a fonte do ministério entrevistada pelo jornalista italiano, seria a grande pressão de centenas de milhares de cidadãos sul-americanos em função das facilidades da legislação italiana sobre a questão, única na Europa.
Para completar, outra matéria, sob o título L' allegra colonia di turisti che aspettano il documento, revela detalhes da estadia de brasileiros na Itália que fazem o "sacrifício" de enfrentar o inverno, sem falar uma frase em italiano, para conquistar a cidadania, ou melhor, o passaporte comunitário. A matéria sobre uma questão pontual, a começar pelo título, ironiza uma situação revelando a posição sobre o tema.
A denúncia do Corriere apresentou algo inusitado? Não, trata-se de um problema recorrente que, em maior ou menor proporção, vem ocorrendo não apenas a partir de 2002, como registra a matéria, quando a legislação permitiu a obtenção da cidadania na Itália. Fraudes, ou tentativas de, também ocorriam antes, quando os processos eram realizados apenas no país de origem do pretendente.
As possibilidades de fraude, isto sim, se ampliaram, como em qualquer procedimento legal, quando se abrem novas alternativas de se buscar um direito. Em julho de 2008, por exemplo, um grande esquema foi descoberto na Argentina. Uma megaoperação policial prendeu dezenas de pessoas envolvidas em falsificações de documentos. A investigação, que teve à frente o juiz federal Norberto Oyarbide, revelou como escritórios que se dedicavam a realizar os trâmites de cidadania agiam para facilitar a vida de cidadãos comuns e, especialmente, jogadores de futebol.
Também naquela ocasião, como destacava o advogado do consulado italiano em Buenos Aires, Sergio Barzola, entre os beneficiários do esquema havia pessoas que tinham algum ascendente italiano e também outras que obtiveram a documentação sem sequer ter qualquer direito. Barzola disse ainda que algumas sabiam que estavam fraudando e outras que não tinham noção de que estavam infringindo a lei.
Portanto, o problema não é novo. E vai continuar acontecendo, mesmo que as autoridades imponham restrições e regras mais rígidas, seja em relação ao processo, seja em relação aos escritórios que atuam na área. Possivelmente a única maneira de acabar com o problema seja extinguir total e definitivamente a possibilidade de os ítalo-descendentes requererem um direito que, de certa forma, foi usurpado de seus ancestrais, quando se viram obrigados a emigrar para continuar sobrevivendo.
Seria mais ou menos como a solução apresentada por um político para acabar com a pobreza nas favelas. Colocar uma bomba e explodir esses locais, exterminando tudo e todos. Fim mesmo.
Que existem indivíduos que, mesmo com ascendência, vislumbram no processo de cidadania unicamente como uma forma de ingressar no mercado de trabalho europeu e facilitar o seu ingresso nos Estados Unidos, sem qualquer laço efetivo de italianidade, por puro interesse pragmático, é verdade; que existem pessoas que se aproveitam dessa situação para ganhar dinheiro, falsificando, agindo à margem da lei, também é verdade; que é necessário um aprimoramento, uma atualização nas normas visando minimizar as possibilidades de fraude, igualmente é mais do que recomendável, é necessário.
Agora, o que é extremamente injusto e discriminador que atinge mortalmente um direito inalienável inscrito no DNA e na etnia, que pisoteia no resgate de uma dívida histórica, é o risco de generalizar, colocando sob suspeita todo o contexto, atingindo inclusive quem atua na área dentro das regras e, o mais grave: negando novamente um direito – no caso, aos descendentes - já retirado de milhões de italianos e italianas que não tiveram outra alternativa a não ser deixar a sua pátria. Quase expulsos.
Desde que assumiu, o subsecretário do Ministério do Exterior, Alfredo Mantica, vem aumentando o tom do discurso questionando o sistema de concessão de cidadania. Mais recentemente, com a descoberta do suposto envolvimento de um senador eleito no exterior com o crime organizado, reascendeu-se igualmente o debate sobre o direito ao voto dos italianos no exterior.
Esse senador, eleito pela circunscrição da Europa, já havia sido denunciado por falsificar o endereço. Ou seja, morava na Itália, mas concorreu pelo exterior. O Senado suspendeu o processo que pedia a sua cassação. Somente com o surgimento do fato novo, sua relação com a Ndrangheta, é que decidiram levar adiante a matéria. Mas o senador, Nicola Di Girolamo, antecipou-se e renunciou.
Assim como o processo de cidadania, o voto no exterior também é muito suscetível a fraudes e precisa ser aperfeiçoado, melhorado, modernizado.
Tornar os sistemas mais eficientes, menos suscetíveis às trapaças, com o aprimoramento de regras e normas, é a tendência natural de uma legislação em um regime democrático. Na realidade, só a democracia impede o engessamento das leis, que também pode ser traduzido como autoritarismo.
Uma representativa parcela dos homens públicos da Itália, assim como uma parcela dos formadores de opinião, com algumas exceções, tratam da questão dos cidadãos no exterior a partir de um proselitismo de valorização e reconhecimento. Mas quase invariavelmente tudo fica apenas no discurso.
A mídia, como habitualmente ocorre, trata a questão com a superficialidade comum ao jornalismo cotidiano, sem uma análise mais criteriosa e aprofundada. A espetacularização do acontecimento pontual é o que prepondera.
A noção efetiva do que pode representar para a Itália os milhões de cidadãos italianos espalhados pelo mundo ainda não foi dimensionada na sua real grandeza. Pouco foi feito para explorar esse potencial - econômico e cultural. Por desinteresse, ausência de percepção ou incompetência.
E isso precisa ser tratado como uma questão de Estado. Não de governos. Sob pena de tudo não passar um jogo de interesses político-eleitoreiros.
Nesse sentido, cabe lembrar um episódio ressalvando a máxima segundo a qual “político nunca esquece”. Isto é, se você fizer alguma coisa contra um político, pode esperar. Mais cedo ou mais tarde, vem o troco.
Nas primeiras eleições que tiveram a participação dos italianos no exterior, em 2006, foram exatamente pouco mais de 20 mil votos vindos de fora que determinaram a derrota – impedindo a continuidade – de Silvio Berlusconi no poder. A coalização de centro-esquerda, tendo à frente Romano Prodi, voltou a administrar o país, porém não chegou a completar dois anos. Os desacertos internos entre os partidos integrantes do bloco provocaram a queda de Prodi e a necessidade de novo pleito em 2008.
Pois bem. Foi senador Mirko Tremaglia, aliado de Berlusconi, foi quem engendrou e liderou a luta, nesse período anterior a 2006, pelo voto dos italianos no exterior, concretizando uma antiga aspiração da comunidade. Seria absolutamente natural esperar um reconhecimento dos eleitores. Porém, a coalizão de Berlusconi foi derrotada por apenas alguns milhares de votos, que não existiriam se não houvesse eleições no exterior. No estrito terreno da conjectura, da ilação, isso pode ter ficado "marcado".
Enfim, suposições à parte, há um fato: quando um veículo como o Corriere Della Sera trata do assunto da forma como tratou (acesse o site do veículo e coloque no mecanismo de busca as palavras passaporti italiani), e com todos os antecedentes dessa história, de repente a possibilidade de terra arrasada pode surgir como a panacéia para "o problema" da cidadania.
Uma última observação: quem trata a questão da cidadania sem se ater à complexidade subjacente ao tema, como alguns políticos, possivelmente não teve uma família envolvida com o drama da emigração. Talvez, na ausência de consciência histórica, nem se dê conta que aqueles milhões de emigrantes que deixaram sua pátria foram os que, em última análise, garantiram a sobrevevivência e a manutenção de suas famílias na Itália, dos que ficaram.
José Antônio Bonfilho Zulian
Um comentário:
Só espero que essa idéia não vá frente, pois sou filha de italianos quee vieram pro Brasil na década de 50, pra prosperar, e trabalharam muito duro. Concordo que todo o sistema tenha que ser atualizado, informatizado, amarrado, porque do jeito que etá não dápra ficar........, 8 anos esperando pra legalizar documentos, é demais pra qualquerser humano esperar
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